Faz, hoje, dois anos que o Nuno morreu. Hoje recupero parte de um texto que escrevi o ano passado, pois o sentimento é o mesmo. Saudade, revolta e dor…
É impossível esquecer aqueles momentos que marcaram, para sempre, a minha vida.
O Nuno tinha apenas treze anos de idade. Detentor de um sorriso tímido, mas lindo e puro, de uns olhos grandes e inocentes, de uma alma doce e imensa.
Sempre fui um irmão ausente, muito por culpa da minha profissão. De manhã à noite, o dia é passado em correrias, noticiários, conferências de imprensa, telefonemas, gravações...
Mas o Nuno estava sempre ali para me apoiar. Compreendia-me.
Em frente ao computador jogávamos "FIFA". Fazíamos planos.
Prometemos ser os melhores amigos do mundo. E, até ao final, cumprimos.
Naqueles dois últimos meses, eu, tinha abdicado de tudo, por ti. Senti-me na responsabilidade de acompanhar o pai e a Lena. De os apoiar os mais que pudesse. Chamei a mim a responsabilidade de estar presente na tua partida. Sentia que, esse momento, estava perto. Quis "livrar" o pai e a Lena dessa hora horrível e inexplicável.
Passaram dois anos desde que partiste. Em 13 anos da tua vida foram muitas as vezes que te vi chorar, mas nunca como naquela altura. Estavas perdido de dores. As três injecções de Morfina que te administraram não sortiram efeito. A dor, teimosamente, estava lá...
Horas antes da tua partida, Portugal defrontou a Suécia, em Coimbra. E como esse jogo me trouxe à ideia a tua felicidade quando, um dia, te levei ao Estádio da Luz. O Benfica era a tua, e a nossa, paixão. E continuará a ser…
Mas, naquele dia fatídico, há dois anos, estávamos tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe, naquele jogo da vida. Lembro-me que não quiseste ver o futebol na televisão. "O Scolari não deixou aqui (ao hospital) vir os jogadores. Não gosto dele", disseste-me, para justificar as dores que tentavas esconder.
Nunca falámos abertamente do momento pelo qual estavas prestes a passar.
Contudo, sabias o que estava "em jogo": a tua vida. Os teus olhos castanhos revelavam a revolta de quem, sem nada fazer, tinha uma "dura" conta para pagar, não com dinheiro, com a vida.
Filho da puta de cancro. Puta de leucemia que te arrancou à vida. Foda-se... que revolta tão grande... que dor imensa invade a minha alma. Ainda hoje, dois anos passados…
Desviavas o olhar sempre que te perguntava como estavas. Tentavas falar noutra coisa, ou simplesmente manter o silêncio. Não insistia, percebia o porquê.
Lembro-me tão bem. Foi de quarta-feira (28) para quinta (29). O pai e a Lena saíram do quarto onde estavas no Hospital Pediátrico de Coimbra e foram, ao exterior, fumar um cigarrito. Descomprimir. "Apanhar" ar... Chorar baba e ranho sem que fossem vistos por ninguém. Sem que fossem vistos por ti. Mas tu sabias. Sentias o que lhes ia no coração. Por várias vezes mo disseste.
Eram cerca de 23h, de quarta-feira, dia 28. Horas antes o meu coração apertou-me de tal forma que me falou numa dor imensa. Uma dor que eu iria sentir. Resolvi, nessa noite, ficar no hospital. Contigo, com o pai e com a Lena. Pressentia-o. O fim, triste e doloroso, estava a chegar.
Encostado a ti, na cama do quarto 9, segurava a botija de água quente que, de encontro às tuas costas, te aliviava as dores. Essas putas que teimavam em azucrinar-te o corpo. Pouco mais havia a fazer. Aconteceu. "Tirem-nos (pai e Lena) daqui", pedi, assustado, às enfermeiras.
Tinha a perfeita noção do que estava acontecer. Sentia as minhas pernas a tremer.
Abracei-te, Nuno. O fim estava a chegar. O teu fraco sangue "corria" rumo aos pulmões.
No último momento de lucidez, olhaste-me e deixaste cair uma lágrima, que me tocou no rosto. Essa imagem, meu deus... Que frustração, que revolta... Que vontade sei lá de quê, quando, hoje, a meio da noite, acordo "lavado" em suor... É apenas mais um pesadelo. Um entre centenas...
No quarto ao lado, a mãe de uma criança observava-nos incrédula. Olhava resignada para mim e abraçava a filha. Deixei de a ver... O lençol branco tapou o vidro que nos separava.
Percebi então que nada mais havia a fazer, senão ajudar-te na partida.
Lembro-me bem das primeiras palavras que, depois, disse ao pai e à Lena: "Foi em paz, sem dor e com muito amor". Quis tranquiliza-los. Como se isso fosse possível...
Naquele momento pereceu também uma parte de mim…
Não chorei. Apenas, uma incontrolável dor me destruía por dentro.
O Nuno já não iria para casa para, nesse fim-de-semana, celebrar o meu aniversário e assistirmos ao Benfica-Sporting. Era Quinta-feira, dia 29. 00h15 minutos.
Para ti, meu irmão Nuno,
Amo-te e amar-te-ei sempre...
Paulo Dâmaso